quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O Sonho, a Capital


Juliano Flávio

Engenheiros, arquitetos, advogados
Especialistas os mais refinados
Não calcularam bem,

Mesmo assim se fez
O mundo subiu
O concreto misturou
O cerrado se revoltou

Qual que madrugada
Onde nada se vê
O sonho se abriu
A obra, o canteiro
Sumiram.
Feito crianças
Todos vieram
Todos mudaram de vida
Maltrapilhos e engravatados
Surgiram os mais diversos
Estórias e afetos
E arrependimentos e desalentos
Todos vieram

O fado e o frevo dançaram uma valsa vienense
A tortura e massa escaldante aí passaram a namorar
E se casaram e tiveram filhos
O jeito sereno ficou para trás
As terras, as cabanas, os bares
Os amores, os morros e a beira mar
O beijo em copacabana
Seus olhos choraram
Em chão impermeável

E seus filhos
Brotaram das frestas de memória
Que ainda fazem seus plantões
Os cinquenta anos passaram independente
De decreto que assim pudesse dizer.
Mas 50 anos sempre passam
De 50 em 50 anos.

A Arapuca


Juliano Flávio

A arapuca e a vida enfim se encontraram
E por mais que zombes, ou chores,
Ou escrevas estes versos, não sabes com sair.

O salão de ilusões se fez
Em pouco mais de quatro paredes,
Mil rotatórias, quinhentos monumentos
Nenhum encontro, ou esquina.

Dentro de caixas particulares,
Repletas de pequenos confortos:
A internet, a TV a cabo, o filme qualquer
Talvez uma rede para nenhuma vista,
O barulho artificial, o capricho da vida
Se apresenta para todos.

O despertador toca pela manhã
O leite gelado, o jornal,
A rua que não existe.

Os vizinhos ao se encontrarem
Pela manhã deixam algo frio no ar...
Os perfumes que se entopem
Não disfarçam a noite vazia,
O cheiro de mofo e de dor,
O escuro frizante e o não falar.

O caldeirão de concreto não nos comporta
Ou não nos comportamos tão bem
Como se previa.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A Saudade

Juliano Flávio

O avô, o pai que se foram
O tio que falecera
A mãe que um dia irá...
O cheiro da infância
O leite, o choro, a criança
Há sempre aquela lembrança.

Ai! Que saudade.
Mas como dói!

Outras, quando se acorda,
Há sempre aquela lembrança.
O dia transcorre
Carros e pessoas passam
Sinais, faturas, corredores
Há sempre aquela lembrança:
O beijo amado.
Quando se tem um momento,
Há sempre aquela lembrança.

Reflete a ausência presente em ti
Corrói e acaricia a alma
Mosaico de carinho,
Tristeza, fome e desejo.
Há sempre aquela lembrança.

Memória do dia anterior e do porvir.
Lembrar daquilo que fora
e daquilo que virá: estranho!

Ai! Que saudade.
Mas como é bom!

quinta-feira, 12 de junho de 2008

A Rua

Juliano Flávio

Quanta falta me faz
a rua Antônio Dias.

Seu cheiro de flor africana
Sua inclinação forte
Seus sinos retintando

Quanto triste me faz
a rua Antônio Dias

Rua velha e enlodada,
sua árvore mais velha ainda
que tentaram derrubá-la
mas permaneceu doente e rígida
Tronco velho em raiz profunda

Por trás daquela rua
vários quintais e estórias
algumas de dor, outras de rir
outras apenas estórias:

Ao fundo um morcego morto
que caiu do telhado,
o gato o pega e a dona grita de pavor.

Meu pai pinta o bigode,
enquanto minha mãe toma seu banho
minha irmã puxa meu cabelo
E eu assistia a aquilo tudo, já me ardendo de saudade.

O ladrão que ontem pulava o muro do vizinho,
antes me trazia preocupação.
Hoje me traz nostalgia.

Hoje eu, superior,
Flutuo soberbo,
uso o Google Earth,
Quilômetros de distância dali,
Embora perto,
Não vejo mais
a rua Antônio Dias
e que falta me faz.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

O Ócio

Juliano Flávio

Às vezes me falta alguma inspiração,
acordo com dificuldade e tento levantar
há mesmo uma expectativa ruim
não há mesmo uma esperança.

Às vezes me dá vontade de me desfazer,
levanto em direção ao banho
há que se limpar para sofrer
E isso não é justo.

Às vezes me falta energia para pegar a condução.
Tento em vão sorrir,
ao cruzar pela primeira vez com as pessoas,
Aí sai um sorriso minguado, amarelo.

Às vezes chego no trabalho vazio,
Outras vezes, penso em ser antes atropelado.
Quem sabe assim me dispensam?
Quem sabe alguns dias no hospital?

Me lembro que também posso morrer
E há muita preguiça para isso.
Então caio da cama,
Mas vamos, pare de sonhar!
Você é desempregado.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

O Tempo

Juliano Flávio


Às cinco e meia arrebentou a bolsa da mãe
Às seis acordou para a escola
Às sete fumou o primeiro trago
Às oito levou trabalho para a faculdade
Ao meio-dia saiu para o almoço de negócios
Às duas entrou com a noiva na igreja
Às três voltou da maternidade
Às quatro levou o filho ao médico
Às cinco sua mãe ao cemitério
Ao pensar guardar o tempo

Escorregou em suas mãos
Caiu no meio-fio
Esvaiu-se por boca-de-lobo
E seguiu.
Horas se foram
E parece que o dia iria acabar

Às seis o filho foi entregue em núpcias
Às sete sofreu um acidente e pensou que seria o fim

Não era

Às oito buscou o neto em jardim de infância
Às nove teve dúvidas se tinha almoçado
Às dez leu o jornal, não tinha nada mais a fazer
Às onze passou mal, acordou na enfermaria
Às doze recebeu a extrema-unção.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A Paixão

Juliano Flávio

Como ler a paixão no dicionário:
Paixão - verbete singular.
Da maior dor ao torpor do prazer,
essa transita entre Deus e o diabo
como quem, corriqueiramente,
vai ao supermercado e compra uma fruta.

Mas, não se esqueça!
Que esta cobra de seus súditos o imposto da alma
por lhes dar em troca o sabor da ambrosia.

É pouco? Talvez.
Mas você conhece ambrosia?

Essa já tingiu por diversas vezes
a vida de cores que nunca existiram,
deu ao homem cego a visão que tinha na infância
e levou a humanidade ao espaço.

Afinal, o amor é cego
ou outra forma de ver o mundo?

para Vanessa Bárbara

O Espelho

Juliano Flávio

Ó alma desfigurada,
Sabes que de ti nunca esperarei
Um afeto ou um gesto de amizade.

Há piedade?
Somente buscas o alimento dos fracos
E em seguida o retiras com suas unhas.

Porque tirastes a sede e o espírito
Porque nos deixaste a carne e a fome?

Resta ainda saber se te despedaçar
Basta para mitigar o sofrimento.

O Narciso nasce, mas nunca morre.
Está sempre por perto,
Pronto para, em um golpe,
Te desfigurar completamente.

Ó desastre de areia.
Porque de nós o pior tirastes?
Presas enjauladas que somos,
insetos em lamparina.
Não sentimos nada,
Apenas somos.

Ó alma desfigurada
Porque governas o mundo?

O Parto

Juliano Flávio

Então sentava a menina
e escondia seu ventre de todos

atravessava correndo a sala de visitas
não olhava para o lado
acenava para seu pai
depois recolhia-se no quarto
o pai comentava:
essa menina tão apressada
nunca olha direito por onde anda
qualquer dia se espatifa no chão

como esconder os frutos das árvores?
menina esperta fingia a sua não existência
repleta de segredos

trancava-se horas no banho
era seu reduto em que nua
via sua realidade

A mãe sempre entretida
com os caprichos do pai
não se importava com sua concorrente
Sôfrega, desistia de olhar o óbvio

Seus pais tomados pela cegueira
não se afligiam com a menina
Vá brincar com sua prima
Achavam-na muito reclusa

Um dia ao acordar
sintiu um líquido
correm todos ao hospital
Doutor o quê tem minha filha?
O que tem ou o que está tendo?
Como assim?
Sua filha está tendo um parto.

Assim venceu a menina
passeando sobre seus pais
nada lhes ofereceu de pista
nem uma dica de seu rebento
substantivo abstrato
que de tão abstrato sumiu
em meio a tantos substantivos,
tantas preocupações e visitas constantes:

É o moço que vende enciclopédias
outras vezes a vizinha que pede um pouco de açúcar
O caminhão de gás, o homem da luz,
O entregador de pizza
Depois é levar a filha mais nova na escola
Tantos esclarecimentos a dar para o marido
e o marido à mulher

Não se via o crescimento,
o rebento que iria rebentar.
o parto se deu
o menino cresceu
e a menina continuava
a esconder suas ternuras
e seus caprichos
parece que nada havia acontecido.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

O Equilíbrio

Juliano Flávio

Difícil é manter o equilíbrio.
na vida, já que tudo se perde,
porque não perder também o equilíbrio?
O equilíbrio:
Faca de dois cortes
se pega corta, se larga corta
difícil é manter o corte
mais difícil se manter
sobre o fio da navalha
se aperta mata, se a solta se vai
difícil mesmo é manter o equilíbrio
acho até que o homem equilibrado
é ansioso em tudo na vida
o equilíbrio é viver
numa corda bamba
segurando um santo em uma mão
e o diabo em outra
o equilíbrio é tentar ser
aquilo que não é
é viver entre dois modos
de vida sem estar em nenhum deles
o equilibrado é sensível
a qualquer sopro
não suporta o acaso
tem pavor da vida
é, entretanto, admirável,
pois difícil mesmo é manter o equilíbrio
o homem equilibrado deve estar
à beira de uma loucura
loucura dessas que não dá para contar
um dia se atira do precipício
em direção ao caos
à baderna e à libertinagem
sem explicação nem modos
larga família e filho amamentando
vestirá a pior roupa
e beberá a pior bebida
atira-se-á pela janela
e pousará na perdição
aliviado,
pois que enfim
perdeu
o equilíbrio