sexta-feira, 9 de maio de 2008

O Tempo

Juliano Flávio


Às cinco e meia arrebentou a bolsa da mãe
Às seis acordou para a escola
Às sete fumou o primeiro trago
Às oito levou trabalho para a faculdade
Ao meio-dia saiu para o almoço de negócios
Às duas entrou com a noiva na igreja
Às três voltou da maternidade
Às quatro levou o filho ao médico
Às cinco sua mãe ao cemitério
Ao pensar guardar o tempo

Escorregou em suas mãos
Caiu no meio-fio
Esvaiu-se por boca-de-lobo
E seguiu.
Horas se foram
E parece que o dia iria acabar

Às seis o filho foi entregue em núpcias
Às sete sofreu um acidente e pensou que seria o fim

Não era

Às oito buscou o neto em jardim de infância
Às nove teve dúvidas se tinha almoçado
Às dez leu o jornal, não tinha nada mais a fazer
Às onze passou mal, acordou na enfermaria
Às doze recebeu a extrema-unção.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A Paixão

Juliano Flávio

Como ler a paixão no dicionário:
Paixão - verbete singular.
Da maior dor ao torpor do prazer,
essa transita entre Deus e o diabo
como quem, corriqueiramente,
vai ao supermercado e compra uma fruta.

Mas, não se esqueça!
Que esta cobra de seus súditos o imposto da alma
por lhes dar em troca o sabor da ambrosia.

É pouco? Talvez.
Mas você conhece ambrosia?

Essa já tingiu por diversas vezes
a vida de cores que nunca existiram,
deu ao homem cego a visão que tinha na infância
e levou a humanidade ao espaço.

Afinal, o amor é cego
ou outra forma de ver o mundo?

para Vanessa Bárbara

O Espelho

Juliano Flávio

Ó alma desfigurada,
Sabes que de ti nunca esperarei
Um afeto ou um gesto de amizade.

Há piedade?
Somente buscas o alimento dos fracos
E em seguida o retiras com suas unhas.

Porque tirastes a sede e o espírito
Porque nos deixaste a carne e a fome?

Resta ainda saber se te despedaçar
Basta para mitigar o sofrimento.

O Narciso nasce, mas nunca morre.
Está sempre por perto,
Pronto para, em um golpe,
Te desfigurar completamente.

Ó desastre de areia.
Porque de nós o pior tirastes?
Presas enjauladas que somos,
insetos em lamparina.
Não sentimos nada,
Apenas somos.

Ó alma desfigurada
Porque governas o mundo?

O Parto

Juliano Flávio

Então sentava a menina
e escondia seu ventre de todos

atravessava correndo a sala de visitas
não olhava para o lado
acenava para seu pai
depois recolhia-se no quarto
o pai comentava:
essa menina tão apressada
nunca olha direito por onde anda
qualquer dia se espatifa no chão

como esconder os frutos das árvores?
menina esperta fingia a sua não existência
repleta de segredos

trancava-se horas no banho
era seu reduto em que nua
via sua realidade

A mãe sempre entretida
com os caprichos do pai
não se importava com sua concorrente
Sôfrega, desistia de olhar o óbvio

Seus pais tomados pela cegueira
não se afligiam com a menina
Vá brincar com sua prima
Achavam-na muito reclusa

Um dia ao acordar
sintiu um líquido
correm todos ao hospital
Doutor o quê tem minha filha?
O que tem ou o que está tendo?
Como assim?
Sua filha está tendo um parto.

Assim venceu a menina
passeando sobre seus pais
nada lhes ofereceu de pista
nem uma dica de seu rebento
substantivo abstrato
que de tão abstrato sumiu
em meio a tantos substantivos,
tantas preocupações e visitas constantes:

É o moço que vende enciclopédias
outras vezes a vizinha que pede um pouco de açúcar
O caminhão de gás, o homem da luz,
O entregador de pizza
Depois é levar a filha mais nova na escola
Tantos esclarecimentos a dar para o marido
e o marido à mulher

Não se via o crescimento,
o rebento que iria rebentar.
o parto se deu
o menino cresceu
e a menina continuava
a esconder suas ternuras
e seus caprichos
parece que nada havia acontecido.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

O Equilíbrio

Juliano Flávio

Difícil é manter o equilíbrio.
na vida, já que tudo se perde,
porque não perder também o equilíbrio?
O equilíbrio:
Faca de dois cortes
se pega corta, se larga corta
difícil é manter o corte
mais difícil se manter
sobre o fio da navalha
se aperta mata, se a solta se vai
difícil mesmo é manter o equilíbrio
acho até que o homem equilibrado
é ansioso em tudo na vida
o equilíbrio é viver
numa corda bamba
segurando um santo em uma mão
e o diabo em outra
o equilíbrio é tentar ser
aquilo que não é
é viver entre dois modos
de vida sem estar em nenhum deles
o equilibrado é sensível
a qualquer sopro
não suporta o acaso
tem pavor da vida
é, entretanto, admirável,
pois difícil mesmo é manter o equilíbrio
o homem equilibrado deve estar
à beira de uma loucura
loucura dessas que não dá para contar
um dia se atira do precipício
em direção ao caos
à baderna e à libertinagem
sem explicação nem modos
larga família e filho amamentando
vestirá a pior roupa
e beberá a pior bebida
atira-se-á pela janela
e pousará na perdição
aliviado,
pois que enfim
perdeu
o equilíbrio